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 A linha de pesquisa em inovação pedagógica da Universidade da Madeira e as investidas do senso comum

Carlos Nogueira Fino

Coordenador da linha de pesquisa em inovação pedagógica

do Centro de Investigação em Educação da Universidade da Madeira (CIE-UMa)

Junho de 2020

 

 

 

1. Os motivos

 

Eu sei que não se deve dar publicidade grátis a quem não a merece, mas abro aqui uma exceção por pura indignação e porque continuo a pensar que vale a pena preservar a linha de investigação em inovação pedagógica da Universidade da Madeira.

 

Tomei conhecimento de que um grupo de quatro professores universitários (Paulo Brazão e Alice Mendonça, da Universidade da Madeira, e Alfrancio Ferreira Dias e Lívia de Rezende Cardoso, da Universidade Federal de Sergipe), tinham redigido e feito publicar na RPGE– Revista on line de Política e Gestão Educacional (v. 24, n. 2, p. 571-592, maio/ago. 2020), um artigo intitulado “Caracterização da produção científica na área de inovação pedagógica do curso de doutorado da Universidade da Madeira”.

 

Uma vez que fui, em 2003, o principal impulsionador da criação de uma linha de pesquisa em inovação pedagógica da Universidade da Madeira e diretor dos programas de mestrado e doutoramento em inovação pedagógica desde essa data, o título do artigo não poderia ter deixado de despertar a minha curiosidade. E a circunstância de Paulo Brazão ter sido meu orientando de doutoramento, precisamente em inovação pedagógica, foi motivo acrescido dessa curiosidade.

 

Mas existe ainda uma outra razão que me levou a dar atenção ao artigo: oriento atualmente um estudante, cujo projeto de tese de doutoramento, legalmente registado como sua propriedade intelectual, se intitula Estudos sobre inovação pedagógica: uma metassíntese interpretativa. O escopo deste projeto corresponde ao conjunto das muitas dezenas de dissertações e teses defendidas na Universidade da Madeira, na especialidade de inovação pedagógica, desde 2005.

 

Os autores do artigo, que são professores da Universidade da Madeira e membros do seu Centro de Investigação em Educação, qualidade que ostentam no artigo, não podem alegar desconhecer estes factos. E deveriam saber que não existe nenhuma utilidade académica ou científica em tentarem antecipar-se ao doutorando, pondo a circular “conclusões” de um “projeto” cuja cientificidade é nula. E deveriam respeitar, não o minando, o trabalho sério e rigoroso que está em curso e que não será divulgado antes de passar pelo crivo do orientador e do júri ao qual será apresentada a tese respetiva.

 

2. Uma amostra

 

No referido artigo, os articulistas assumem-se como promotores de um projeto de cooperação internacional entre a Universidade da Madeira e a Universidade de Sergipe, intitulado Inovação Pedagógica: identidade, teoria e práticas (IPITP), no qual se manifestam preocupados (sic) com o volume de informação existente na área de Inovação Pedagógica no acervo digital da Universidade da Madeira (Brazão et al., 2020. p. 574). Os objetivos do projeto são os seguintes:

 

a) Identificar os contributos teóricos, conceptuais e metodológicos na área de Inovação Pedagógica nas pesquisas obtidas no curso de doutoramento em Educação, na especialidade de Inovação Pedagógica, da Faculdade de Ciências Sociais, da Universidade da Madeira; b) Identificar as Boas Práticas reconhecidas contextualmente como inovadoras, para o campo da Pedagogia e da Educação nessas pesquisas; c) Reconhecer a existência de referências identitárias no campo das ciências da educação, na especialidade de Inovação Pedagógica. (Idem, ibidem).

 

Apesar de eu ser profusa e laudatoriamente referido no artigo em questão, o qual inclui sete artigos de que sou autor, além de 9 teses de doutoramento orientadas por mim, nas referências bibliográficas, nenhum dos seus autores considerou poder ser interessante saber o que eu pensaria do projeto e do artigo, apesar de reconhecerem que Os aspetos identitários destes trabalhos de pesquisa são definitivamente marcados pela influência do orientador que mais teses orientou, o Professor Carlos Nogueira Fino, o fundador, diretor e o coordenador da linha de investigação (Idem, Ibidem, p. 587). Além de mim, foram ignorados, na conceção e desenvolvimento do projeto, todos os pesquisadores da linha de pesquisa em inovação pedagógica do Centro de Investigação em Educação da Universidade da Madeira (CIE-UMa), excetuando Paulo Brazão. E acrescentados três, cuja ligação à linha de pesquisa será marginal, na melhor das hipóteses.

 

3. A reação

 

Como já referi, a iniciativa dos referidos autores não me mereceria qualquer reação, se não objetivasse colar-se ao grupo de investigadores que tem, com legitimidade, algo a dizer sobre a linha de pesquisa que inspirei e que ainda coordeno. E se não tivesse sido um desses autores um dos meus orientandos de doutoramento, cujo contributo posterior para a linha de pesquisa tem sido problemático. Por essas razões, decidi arrolar um conjunto de argumentos contra o artigo em questão, porque não posso nem devo permitir que um grupo de professores “de fora”, sem obra consistente no tema, se apodere da reflexão que deve ser feita, e tem-no sido, de dentro.

 

3.1. O universo da “investigação”

 

Os autores reduziram o número das teses consideradas a 21, apesar de terem sido defendidas 29 (e não 25, como afirmam) entre os anos 2008 e 2019, interessando-se apenas pelas que estarão disponíveis no repositório digital. Com essa opção, que não explicam nem fundamentam, deixaram 8 teses de fora, apesar de estas estarem fisicamente disponíveis na Biblioteca da Universidade. Mas não deixaram de considerar que as referidas 21 teses são uma “amostra” adequada, porque “representa 84% do total das teses concluídas”.

 

Não sei o que é que os autores entendem por amostragem, nem sei qual será a percentagem a partir da qual a amostra será adequada, no seu entendimento. Nem sei se se pode utilizar amostragem em metanálise qualitativa e depois extrapolar… Mas sei que a “amostra” que dizem ter utilizado não foi maior do que 72%, corrigido em alta o universo das teses defendidas.

 

3.2. Para que serve e o que é a linha de pesquisa em inovação pedagógica?

 

Se os autores do artigo estivessem mesmo interessados em estudar, divulgar e fazer avançar a linha de pesquisa em inovação pedagógica, talvez não tivesse sido descabido informarem os seus eventuais leitores de que, conforme se pode ler no sítio institucional do CIE-UMa[1]

 

A linha de investigação em inovação pedagógica estuda obrigatoriamente práticas pedagógicas e acolhe:

Estudos sobre mudanças paradigmáticas locais (práticas pedagógicas envolvendo a criação de contextos de aprendizagem novos);

Estudos sobre fixações em paradigmas do passado (práticas pedagógicas tradicionais, ou mesmo ultra tradicionais, apresentadas como "novas" ou "inovadoras");

Estudos prospectivos sobre educação.

 

Em nenhum momento se fala no site, nem nos documentos estruturantes da linha de pesquisa, de Boas Práticas reconhecidas contextualmente como inovadoras, no campo da Pedagogia e da Educação, relatadas nas pesquisas sobre Inovação Pedagógica, do CIE-UMa, como os autores do artigo referem na página 574. Aliás, a expressão “boas práticas” é uma ideia muito do agrado do establishment, mas está nos antípodas do conceito de inovação pedagógica, tal como tem sido desenvolvido em dezenas de projetos de pesquisa de mestrado e de doutoramento. Esse conceito rejeita liminarmente que seja inovação pedagógica a repetição de metodologias codificadas e endossadas de fora, reduzindo os seus destinatários (discentes e docentes) ao mero exercício de repetirem o que foi imaginado e criado por outros e, pior ainda, em contextos diferentes. A pedagogia, tal como a concebemos, na esteira dos autores seminais em que nos fundamentamos (Papert, Freire, Piaget, Vygotsky, etc.) e que o artigo desconhece, não é algo exportável e consumível, mas construção dialógica entre aprendentes e facilitadores, situados no seu hic et nunc.

 

Ou seja, toda a pedagogia tem de ser pedagogia de autor, elaborada e desenvolvida localmente, ou não é pedagogia nenhuma.

 

A alusão às “boas práticas” não passa, portanto, de uma contaminação proveniente do senso comum, sendo surpreendente como alguém que pesquisou na área e discutiu o conceito de inovação pedagógica na sua tese, se transforma acriticamente numa espécie de cavalo de troia, que contrabandeia, para dentro da linha de pesquisa, ideias que pululam na main stream. Essas ideias são invariavelmente sugeridas a partir de livros-brancos, grandes desafios e como superá-los, etc., invariavelmente emitidos por organizações supranacionais (OCDE, por exemplo) e zelosamente replicadas pelos estados-membros. Também invariavelmente, essas exortações das “boas práticas” olham para os professores como simples técnicos com nula autonomia, cujo papel é transmitir o que lhes mandam transmitir, da maneira como lhes mandam.

 

Na contramão, a linha de pesquisa em inovação pedagógica não pretende codificar, nem sugerir, nem muito menos impor nada a ninguém. Ao invés, tenta aprender com a experiência dos que, muitas vezes com pouquíssimos recursos, mobilizam a criatividade e a motivação necessárias para criarem, com os seus estudantes, contextos de aprendizagem verdadeiramente admiráveis. Ou seja, ao invés de procurar e rotular “boas práticas”, a linha de pesquisa pretende dar voz a quem ousa pensar pela própria cabeça.

 

Também por causa disso, inovação pedagógica não é um conceito cristalizado. Pelo contrário, ao postular a rutura paradigmática e ao enfatizar os processos em vez dos resultados, não está propriamente interessada em “boas práticas”, sugeridas ou impostas top down e pouco atentas às especificidades locais. Bastaria dar um pouco de atenção às várias estruturas curriculares que os cursos de mestrado e doutoramento em inovação pedagógica da Universidade da Madeira foram assumindo ao longo do tempo (coisa que os autores nem imaginaram que deveriam ter feito), para se perceber uma constante, que nunca foi abandonada: disciplinas que, no conjunto, reforçam a atitude crítica (e autocrítica), sem a qual é impossível compreender a necessidade de inovação e como distingui-la das mudanças cosméticas (mais tecnologia, mais horas dedicadas às disciplinas “fundamentais”, etc.).

 

3.3. Os alunos de graduação utilizados como mão-de-obra

 

Os autores do artigo confessam, em nota de rodapé, ter tido a colaboração dos estudantes do 2º Ano do curso de Licenciatura em Ciências da Educação da Universidade da Madeira para a recolha de dados, ainda que não tenham querido especificar os detalhes dessa “colaboração”. No âmbito de que disciplina? Com que grau de liberdade? Com que impacto nas classificações dos alunos? E o que é que os alunos fizeram, exatamente? E os autores do artigo, fizeram verdadeiramente o quê? Se os alunos fizeram o trabalho, por que razão não merecem mais destaque do que uma nota de rodapé?

 

A falta de resposta a estas interrogações é suscetível de fazer levantar dúvidas sobre se todos os princípios éticos, que devem envolver qualquer investigação, foram mesmo considerados e respeitados.

 

3.4. O gráfico “martelado” das orientações de teses concluídas e a realidade

 

Pela simples leitura do artigo é difícil entender o seu verdadeiro propósito, uma vez que não faz avançar nem um milímetro o entendimento sobre o tema, não apresenta nada que tenha algum interesse académico e é nulo o rigor com que foi elaborado. Caso tenha alguma utilidade, é como exemplo do que não deve ser um artigo científico. Mas talvez sirva para os seus autores juntarem mais uma alínea nos respetivos curricula, numa época em que a bibliometria transformou o trabalho científico numa corrida muitas vezes sem qualquer sentido.

 

E, além disso, ou muito me engano, ou o artigo em questão foi publicado sem qualquer tipo de arbitragem prévia, devendo-se a publicação a desígnios inescrutáveis, pelo menos por agora.

 

No meio de tantos gráficos e tabelas risíveis e sem nenhum tipo de interpretação, que valha a pena mencionar, um deles, o gráfico intitulado Orientadores das teses de doutoramento em Inovação Pedagógica, sobressai pela grosseira falsificação. Ao contrário do que o artigo afirma, quem se tivesse dado ao trabalho de consultar o sítio do CIE-UMa buscando informação sobre o número de orientações de teses em inovação pedagógica, entre 2008 e 2019, verificaria que Carlos Nogueira Fino tem 13, e não 12, orientações concluídas. E que Jesus Maria Sousa tem 6, e não dois, como o gráfico “informa”. E que Paulo Brazão tem apenas uma, apesar de ter indicado duas. Além destes, António Veloso Bento tem 4, Maria de Fátima Gomes da Silva tem 2; e Nuno Fraga e Fernando Correia 1, cada.

 

Pelos vistos, Paulo Brazão, que preferiu inventar o seu “projeto” à revelia do Centro de Investigação a que pertence, e excluindo todos os investigadores da linha de inovação pedagógica, tenta aparecer como o segundo em número de orientações de teses e, consequentemente, o primeiro na linha de sucessão na coordenação da linha de pesquisa, quando a questão se colocar. Nos regimes monárquicos já foi assim: se os concorrentes melhor colocados na lista da sucessão desaparecerem, avança o que ficou de pé. Não creio que esta estratégia possa vingar na academia.

 

3.5. O carácter parasitário do artigo

 

Este subtítulo, sendo autoevidente, nem precisa de desenvolvimento.

 

 

É o que parece oportuno dizer sobre este incidente, o que não me impedirá de voltar a ele, se for necessário.

 

Carlos Nogueira Fino